sexta-feira, 25 de abril de 2008

são joão del rei

À revelia de qualquer irreligiosidade, um minuto depois da morte, ele movimenta os dentinhos e começa:

- Um dobre fúnebre, meus amigos! Terceira cabeça de sineiro abatida pela violência da saia de ferro do maior dos sinos! Que fique claro: aquele quarto homem, já descarnado no chão, foi o único a morrer pelo badalo, solto no ar e em seguida na fronte do infeliz. Não há registros de suspiros derradeiros na face de um sineiro que sucumbe durante o ofício. Então, avise a família do Desvirgulado! Bom sineiro, parceiro e exímio dobrador! Sim,eu tentei acompanhar seus ímpetos! Ele emendava gestos bruscos e rápidos, que impulsionavam o giro completo e violento do sino durante o dobre dos feriados cristãos. Foi rei na torre esquerda dessa catedral! Um dobre fúnebre, que dure três cigarros, para ele, meu querido sineiro, que vai putrefazer-se nesse espaço de 4 por 5! Desvirgulado vai deixar de ser sólido entre os amigos!

Aí ele tropeça e cai sobre a própria bunda, encharcando as calças de sangue.

(Costumava-se não tocar os mortos. Assim como não é habitual morder a língua de propósito. Cada corpo que cai dissolve-se no chão. Está previsto pelo senso comum a existência de infinito tapete cadavérico. Quem morre torna-se, por excelência, retalho. Uma vez morto, procede-se com naturalidade e com todos os sentimentos naturais. Só não é de costume segregar os mortos.)


quinta-feira, 24 de abril de 2008

(para o extinto café com creme e seu muso) Dentro da cafeteria, todo mundo

mascava a própria nulidade. E não podia ser de outro jeito.
- Já chega! Estou terrivelmente cansada e não me ocorrem argumentos para continuar.
- Claro que você está cansada, querida. Mentir tem um alto custo físico.
- Enfia no as suas conversas de boa fé.
- Que coisa estúpida de se dizer!
- Eu só não quero dar a entender que ainda agüento olhar para a sua cara.
Ao concluir este relacionamento, a ruiva desaponta o castanho. Ele vira para o lado e usa seu guarda chuva como extensão do dedo indicador para cutucar uma outra ruiva que estava em pé tomando capuccino no balcão:
- Então, querida, o que você anda chupando?
- Nada demais... Um lobo do mar... uma vespa agressiva... hum... deixa eu ver .... um anjo caído, um biscoito do mar, um pistoleiro calado, uma pimenta crepuscular, um cisne equivocado e eventualmente uma maçaneta.
- Não me diga...
- Ah, chupo sim...
Uma das garçonetes da cafeteria volta a se odiar e a pensar em suicídio. Ela comenta com sua colega de trabalho:
- Vamos servir alguma coisa.
- Que coisa estúpida de se dizer.
- É até bastante razoável – conclui, antes de ser acionada pelo freguês que usava um terno
tropical-inglês-brilhante.

O mente sombria já tinha doado todas as cadeiras de sua mesa para as mesas vizinhas. Ele bebe café freneticamente, enquanto pensa na cena que tinha acabado de ver. O ocorrido deu-se no ponto de ônibus e envolveu as duas mãos de um velho enrugado, que tinha gazes envolta das canelas. O velho estava terminando o seu cigarro, quando decidiu sentar-se ao lado do mente. Tomou assento e deu o último trago. Esfregou o nariz, cruzou as pernas e começou a bater palmas. Foi o início de uma longa salva de palmas medíocres. Não eram palmas tímidas. Também não dignificavam um “Bravo!”. A coisa aplaudida, que podia ser nada ou tudo, ou qualquer coisa entre nada e tudo, acabou quando o ônibus chegou. O velho sumiu no Guaruá 226. Na falta do que pensar sobre o enrugado, que provavelmente só gostava do estalo, o mente resolve observar um escoteiro-veado que entrou na cafeteria. O jovem era dado à desmaios públicos, palpitações, taquicardias e calafrios violentos. Foi uma década difícil para ele. O escoteiro escolhe uma mesa perto do banheiro e pede:
- Um digestivo, por favor.

Nas barbas da polícia, uma criança suga nada com o canudinho dentro do copo sem suco.
De repente, na mesa dos fundos, depois do primeiro gole no café, o rapaz pergunta para menina:
- Qual é exatamente a minha parte na sua vida?
- Eu gosto de dividir meu tempo com você.
- A minha geladeira está vazia, eu não tenho saído muito e o meu vizinho reclama do barulho.
- Eu ponho música para minha vizinha e ela gosta.
Discretamente feliz, ele continua:
- Você acha que ainda preciso tomar mais banho e fazer um esporte?
Com um arzinho doce ela responde:
- Só se você quiser.
Aurora.

Três Marias combinam de morrer muito velhinhas, assoladas por dúvidas.
De repente, um ar de pernas, que tem sempre dois reais na bolsa e prefere homens lacônicos, se levanta. Mal sabe o par de pernas, que o seu romance com o galã do caixa vai começar naquele instante:
- Uma garrafinha de água e um café pequeno.
- 1, 40
O galã do caixa devolve 60 centavos e diz:
- Eu tive um pressentimento
- E eu não.
Kenny G.